Otan pode sobreviver sem apoio dos Estados Unidos, dizem analistas

A Europa está diante de uma nova realidade, na qual a presença dos Estados Unidos, até então a espinha dorsal da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – a aliança que garantiu a segurança do continente por quase 80 anos – não é mais uma certeza.
Apesar da preocupação, a Otan sem os EUA está longe de ser impotente, com mais de um milhão de tropas e armamento moderno à sua disposição dos outros 31 países da aliança. Ela também tem a riqueza e o conhecimento tecnológico para se defender sem os EUA, dizem analistas.
Os EUA e a Alemanha são os maiores contribuintes para os orçamentos militar e civil, além do programa de investimento em segurança da Otan, com quase 16% cada, seguidos pelo Reino Unido com 11% e França com 10%, diz uma ficha informativa da aliança. Analistas dizem que não seria preciso muito para a Europa compensar a perda da contribuição de Washington.
Se os países europeus se unirem e comprarem o equipamento certo, a Europa “poderia representar um sério impedimento convencional e nuclear” para a Rússia, disse Ben Schreer, diretor executivo europeu do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), em uma chamada do Zoom com a CNN e outros jornalistas no final de fevereiro.
“A Europa sozinha [ainda tem] capacidade de reunir os recursos de que precisaria para se defender, é só uma questão de se [ela está] disposta a isso”, disse Schreer.
E essa é a questão-chave. Ao longo de mais de 75 anos e das administrações de 14 presidentes diferentes dos EUA, incluindo a primeira administração Trump, os EUA têm sido o tendão que manteve a aliança unida.
Durante a Guerra Fria, as tropas dos EUA no continente estavam lá como um impedimento para quaisquer ambições soviéticas de expandir a aliança do Pacto de Varsóvia e eventualmente viram seu fim quando o Muro de Berlim caiu em 1989. As campanhas da Otan nos Bálcãs na década de 1990 foram conduzidas com tropas e poder aéreo dos EUA. E, até o segundo governo Trump assumir o cargo em 20 de janeiro, Washington liderou a ajuda para a Ucrânia.
Essas décadas de solidariedade transatlântica podem ter chegado ao fim nos últimos dias, dizem analistas.
A explosão do Salão Oval de Trump com Zelensky – após a qual ele interrompeu a ajuda dos EUA a Kiev – “parecia uma ruptura mais profunda, não apenas com a Ucrânia, mas com a estratégia de ‘mundo livre’ dos EUA de Truman a Reagan”, disse Dan Fried, um membro sênior do Atlantic Council e ex-secretário de Estado assistente dos EUA para a Europa, no site do conselho.
John Lough, um ex-funcionário da Otan, vê uma divisão ainda mais profunda na aliança.
“Simplesmente parece que os Estados Unidos veem a Europa mais como um concorrente, um rival, do que como um aliado”, disse Lough à CNN, acrescentando que, por causa disso, o comprometimento de Washington em defender os aliados da Otan está um tanto quanto duvidoso.
É uma fratura que Lough vê como irreparável.
“Quando você começa a perder parte desse comprometimento, você efetivamente perde tudo”, disse Lough.
Algumas pessoas nos círculos europeus estão começando a se perguntar se Washington deve ser descrito “de alguma forma como um inimigo”, disse ele.
Mas alguns analistas dizem que uma Otan sem os EUA não é uma má ideia.
“Assim que os aliados dos EUA se convencerem de que não podem mais confiar nas capacidades dos EUA para defendê-los quando a situação ficar crítica, eles correrão para compensar e trabalhar para aumentar suas próprias capacidades”, escreveu Moritz Graefrath, um pesquisador de pós-doutorado em segurança e política externa no William & Mary’s Global Research Institute, em War on the Rocks no ano passado.
“É nesse sentido que – talvez contraintuitivamente – uma retirada das forças dos EUA criará uma Europa ainda mais forte, não mais fraca”, escreveu Graefrath.
O primeiro-ministro da Polônia, país membro da Otan, Donald Tusk, acha que esse processo já começou.
“A Europa como um todo é realmente capaz de vencer qualquer confronto militar, financeiro e econômico com a Rússia – somos simplesmente mais fortes”, disse ele antes de uma cúpula da União Europeia esta semana. “Só tivemos que começar a acreditar nisso. E hoje parece estar acontecendo.”
O que a Europa tem?
No papel, um exército europeu pode ser formidável.
A Turquia tem as maiores forças armadas da Otan depois dos Estados Unidos, com 355,2 mil militares ativos, de acordo com o Military Balance 2025, compilado pelo IISS. Seguem-se a França (202,2 mil), a Alemanha (179,8 mil), a Polónia (164,1 mil), a Itália (161,8 mil), o Reino Unido (141,1 mil), a Grécia (132 mil) e a Espanha (122,2 mil).
A Turquia também tem o maior efetivo do exército, que compõe a maioria das tropas terrestres da linha de frente, com 260,2 mil, França (113,8 mil), Itália (94 mil), Grécia (93 mil), Polônia (90,6 mil), Reino Unido (78,8 mil), Espanha (70,2 mil) e Alemanha (60,6 mil), de acordo com o relatório.
Em comparação, havia cerca de 80 mil tropas dos EUA designadas ou mobilizadas para bases em países da Otan em junho de 2024, diz um relatório de julho de 2024 do Congressional Research Service (CRS).
A maioria dessas tropas dos EUA está na Alemanha (35 mil), Itália (12 mil) e Reino Unido (10 mil), diz o CRS.
Algumas das maiores nações da Otan também têm armas iguais ou muitas vezes melhores do que as da Rússia.
É o caso dos porta-aviões. Enquanto a Rússia tem um único porta-aviões antiquado, o Reino Unido sozinho tem dois porta-aviões modernos capazes de lançar caças furtivos F-35B. França, Itália e Espanha têm porta-aviões ou navios anfíbios capazes de lançar jatos de combate, de acordo com o Military Balance.
Além dos EUA, a França e o Reino Unido mantêm forças nucleares, com ambos implantando submarinos de mísseis balísticos.
Os aliados da Otan além dos EUA têm cerca de 2 mil caças e jatos de ataque terrestre entre eles, com dezenas de novos jatos furtivos F-35 incluídos nesse número.
As forças terrestres incluem tanques modernos, incluindo Leopards alemães e Challengers britânicos, cujas unidades doadas agora estão servindo nas forças armadas ucranianas. Os países europeus da Otan podem lançar mísseis de cruzeiro poderosos, como o conjunto franco-britânico SCALP/Storm Shadow, que também se provou no campo de batalha ucraniano.
O relatório Military Balance 2025 observa que a Europa está tomando medidas para melhorar suas forças militares sem a ajuda dos EUA. Em 2024, seis países europeus se uniram em um projeto para desenvolver mísseis de cruzeiro lançados do solo, fizeram movimentos para aumentar a capacidade de produção de munições e diversificar sua base de fornecedores, olhando para países como Brasil, Israel e Coreia do Sul como novas fontes de hardware militar.
Analistas dizem que mesmo se os EUA se retirassem completamente da Europa, isso deixaria uma infraestrutura importante para trás.
Os EUA têm 31 bases permanentes na Europa – instalações navais, aéreas, terrestres e de comando e controle que estariam disponíveis para os países onde estão localizadas se os EUA saíssem.
E Graefrath observa que a infraestrutura não seria perdida para Washington se houvesse arrependimento após uma possível retirada dos EUA.
“Isso deixa grande parte da infraestrutura militar dos EUA intacta por um longo período [garantindo] que os Estados Unidos mantenham a capacidade de fazer um retorno militar se a Europa não responder como previsto”, escreveu ele.

O que vem a seguir?
Alguns esperam que a conversa sobre uma retirada dos EUA da Otan seja apenas uma fanfarronice de Trump com o objetivo de pressionar os aliados a desembolsar e gastar mais em defesa.
Eles dizem que o mundo e outra aliança importante dos EUA já estiveram aqui antes – durante o primeiro governo de Trump, quando ele supostamente pediu ao Pentágono para analisar opções para retirar as tropas dos EUA estacionadas na Coreia do Sul como proteção contra a Coreia do Norte com armas nucleares.
Isso aconteceu enquanto Trump se preparava para reuniões com o ditador norte-coreano Kim Jong Un, nas quais ele esperava persuadir Kim a se comprometer a desistir de seu arsenal nuclear.
Uma fonte próxima à Casa Branca disse à CNN na época que a retirada das tropas dos EUA era vista como algo que poderia acontecer no futuro, mas “não muito depois que as armas nucleares [da Coreia do Norte] fossem comprovadamente desativadas”.
Mas Kim rejeitou todos os pedidos para que ele desistisse de seu programa de armas nucleares.
A reunião Trump-Kim “foi vendida como um grande sucesso, apesar do fato de que não foi”, disse Schreer.
Depois, os EUA retornaram aos “negócios como de costume” na Península Coreana, disse Schreer. Os Estados UNidos – com dezenas de milhares de tropas na Coreia do Sul – os mantiveram lá. Exercícios bilaterais com as forças de Seul foram retomados, navios de guerra americanos visitaram portos sul-coreanos e bombardeiros da Força Aérea dos EUA sobrevoaram a região.
O mesmo pode ocorrer na Europa se Trump não conseguir o que quer de Putin, disseram analistas. A Otan pode continuar, com as recentes ameaças de saída apenas um pequeno obstáculo na estrada.
“Se Putin tentar… ferrar Donald demais, até Donald Trump pode reconhecer isso”, disse Schreer.
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Este conteúdo foi originalmente publicado em Otan pode sobreviver sem apoio dos Estados Unidos, dizem analistas no site CNN Brasil.
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